Como a Pixar começa uma história
Michael Arndt compartilha um processo de criação da Pixar nesse vídeo legendado e transcrito
Em um curso que fiz em 2020, me deparei com um vídeo maravilhoso da Pixar, de ninguém menos do que Michael Arndt, roteirista de Pequena Miss Sunshine, Star Wars: O Despertar da Força e Toy Story 3. Você pode ler todos esses roteiros lá no site do Além do Roteiro.
Nesse vídeo, Michael explora como a Pixar trabalha o início de seus filmes, a partir dos exemplos de Toy Story, Procurando Nemo e Os Incríveis. Ele traz conceitos conhecidos de muita gente, mas a forma como ele conecta os conceitos e estrutura o raciocínio me serviu bastante.
Na época em que assisti ao vídeo, resolvi legendar e compartilhar no site do Além do Roteiro. Agora, trago ele aqui para o Substack, mas com uma adição: abaixo do vídeo, está toda a transcrição do conteúdo, para dar mais uma ferramenta a quem quiser ler o conteúdo.
O vídeo tem cerca de 8 minutos e é bastante didático. Aproveitem!
A metáfora número um que tenho em minha mente para escrever um roteiro é que você está tentando escalar uma montanha com uma venda. E o engraçado é que você pensa “ok, isso é difícil porque você está escalando uma rocha e você não sabe onde está indo e você não sabe onde fica o topo e você não consegue ver o que está abaixo de você”, mas na verdade a parte mais difícil de escalar uma montanha com uma venda é encontrar a montanha.
Olá a todos, sou Michael Arndt, roteirista de Toy Story 3. Na Pixar um monte de pessoas contribuem com ideais para a história, mas eu sou a pessoa que realmente tem que sentar e digitá-las em um computador.
Então, quando começamos a trabalhar em Toy Story 3, tivemos dificulade de construir a história do jeito certo. E eu acho que esse é um problema comum em roteiro, muitas vezes, quando um filme nao funciona, parece haver um problema com o final, mas na verdade as sementes do fracasso foram plantadas no início.
Então, em Toy Story 3, depois de meses para lá e para cá, andando em círculos, eu finalmente decidi voltar e olhar para Toy Story, Procurando Nemo e Os Incríveis e entender como eles construíram seus personagens e seus mundos e suas histórias.
Então isso é algo que aprendi na Pixar: como escrever um bom início.
Geralmente um roteiro tem cerca de 100 páginas, com 3 Atos, e o Primeiro Ato tem cerca de 25 páginas, e o Terceiro Ato tem as últimas 25.
Você começa o seu Primeiro Ato definindo o seu ou a sua protagonista e o seu mundo e por volta da página 25 você deu à sua protagonista um objetivo e a lançou em uma jornada que vai levá-la ao Segundo Ato.
Então vamos começar do começo, página 1: introduzindo o seu personagem principal.
Geralmente o que você faz quando está introduzindo a sua personagem principal é mostrá-la fazendo aquilo que ela mais ama.
Essa é a grande paixão dela, a sua característica definidora, o centro de todo o seu universo.
Então, no caso de Woody, ele é introduzido brincando com Andy. E essa é a coisa favorita dele, é a coisa que define quem ele é enquanto pessoa.
Com Marlin, Marlin é um homem de família, ele acabou de se mudar para uma nova casa com sua esposa eles têm uma nova leva de ovas e ele não poderia estar mais feliz.
E então com Os Incríveis, você introduz o Sr. Incrível sendo um superherói.
Então você começa com a sua personagem principal, você introduz o universo em que ela vive, e você a mostra sua heroína fazendo aquilo que ela mais ama, mas então sua personagem precisa de mais uma coisa, ela precisa de uma falha.
A chave aqui é que a falha da sua personagem na verdade saia de dentro de sua grande paixão, é uma coisa boa que simplesmente foi levada longe demais.
No caso de Woody, ele se orgulha de ser o brinquedo favorito de Andy. Ele ama tanto ser o brinquedo favorito de Andy que não quer dividir isso com ninguém.
Marlin quer tanto ser um bom pai que ele chega a ser um pouco inseguro.
Em Os Incríveis, o Sr Incrível é um pouco como Woody em seu orgulho em seu lugar de Sr Nº 1, e ele não quer compartilhar isso com ninguém, como você vê quando ele topa com Buddy e você vê de novo quando ele topa com a Mulher-Elastica em um telhado.
Então você estabelece uma personagem, estabelece o mundo em que ela vive, estabelece sua grande paixão definidora e estabelece uma falha escondida que sai dessa grande paixão.
E então você quer estabelecer nuvens de tempestade no horizonte, que é a sua personagem andando na estrada da vida em um belo dia ensolarado mas lá no horizonte, há nuvens escuras aglomerando.
Então no caso de Toy Story, é a festa de aniversário de Andy e todos os brinquedos estão com medo de serem substituídos.
E com Nemo, você estabelece o fato de que há um "lado de dentro" dentro da anêmona, onde é seguro e há um "lado de fora", o resto do oceano, que é implicitamente perigoso.
E então em Os Incríveis, Helen diz para Bob "as coisas vao mudar depois de nos casarmos" e então você tem Buddy aparecendo e tendo inveja do Sr Incrível e dizendo, bem:
Isso é porque eu não tenho poderes, não é?
Bem, nem todo superherói tem poderes, sabe, você pode ser super sem eles.
Então você está estabelecendo que há um ressentimento por aí de pessoas normais contra superheróis e está estabelecendo Helen dizendo para Bob, olha, as coisas vão mudar.
Então você começa com a sua personagem principal, você tem o que a define, tem uma falha escondida, você estabelece nuvens de tempestade no horizonte e, então, alguma coisa aparece e explode a vida da sua protagonista e a vira de cabeça para baixo.
Então, no caso de Toy Story, Buzz chega e Woody perde o seu lugar.
E em Nemo, a Barracuda aparece e a família de Marlin é morta, exceto por essa última ova.
Em Os Incríveis, o Sr Incrível salva esse cara, mas então ele é processado e superheróis são banidos.
E em cada um desses casos, se você voltar e olhar para o que a grande paixão deles era, Woody sendo o brinquedo favorito de Andy, Marlin e sua família, o Sr Incrível sendo um superherói, essa é a coisa que é tirada deles. Isso muda completamente o senso da sua personagem do que será o seu futuro,
Mas esse trovão repentino não é suficiente por si só. Não é suficiente apenas arruinar a vida da sua personagem e tirar sua grande paixão e mudar o seu senso de como o futuro será, você tem que piorar a situação. Você tem que ter algo que fará o mundo todo parecer um pouco injusto.
Então, Woody não é apenas substituído, mas é substituído por esse idiota, esse imbecil que nem sabe que é um brinquedo. E eles entram nessa discussão sobre se Buzz pode voar ou não e Buzz pula e quica e plana pelo quarto e todos os outros brinquedos pensam "Oh meu Deus ele realmente pode voar!" E a chave aqui é que todos estão impressionados pela razão errada.
No caso de Nemo, você não precisa piorar a situação, nós já entendemos que o mundo em que Marlin vive é injusto.
Mas por outro lado, em Os Incríveis, a razão para os superheróis serem banidos é porque o Sr Incrível estava tentando fazer a coisa certa.
Então, agora, a vida da sua personagem principal mudou sua grande paixão foi tirada, o mundo se revelou injusto e ela chega a uma bifurcação na estrada e ela terá que fazer uma escolha sobre como lidar com a nova realidade.
Há um caminho nobre a seguir, uma escolha pouco saudável e irresponsável, ou um obscuro a seguir, uma escolha pouco saudável e irresponsável.
E lembre-se, se sua personagem escolher fazer a coisa certa, você não tem uma história.
Para Woody, a escolha saudável é dizer olha, eu tive um dia sob o sol, eu fui o brinquedo favorito de Andy por um longo tempo e eu tenho que ceder o holofote em algum momento,
Mas o que acontece é que Woody faz a escolha não saudável. Woody tenta empurrar Buzz atrás da escrivaninha. E a chave aqui é que estamos torcendo para Woody fazer a coisa não saudável e irresponsável porque nós sentimos sua dor de ser substituído.
Então a decisão não saudável de sua personagem, a decisão não saudável de Woody, cria uma crise, Buzz sendo empurrado janela afora, o que leva a todos os outros brinquedos confrontando Woody e dizendo você não pode ficar no quarto de Andy até você encontrar o Buzz e trazê-lo de volta aqui em segurança.
Essa é a sua Virada do Primeiro para o Segunto Ato.
Você vê algo parecido em Procurando Nemo quando Marlin acha Nemo na beira do oceano aberto.
A escolha não saudável de Marlin, sua superproteção, surge de sua grande paixão, seu amor pelo seu filho. E sua escolha não saudável provoca uma crise, Nemo dizendo:
Eu odeio você ...
nadando para a independência "à prova de balas" e então sendo capturado pelo mergulhador. E agora Marlin tem um objetivo que vai levá-lo por todo o caminho do restante da história.
Em Os Incríveis, a escolha responsável é Bob fazer o que sua esposa manda ele fazer.
Mas isso seria chato e você não teria história, então a escolha irresponsável para Bob é mentir para a sua esposa Helen e ficar de tocaia com seu amigo Gelado.
E nós estamos torcendo para Bob fazer a escolha irresponsável porque nós vimos o quanto ele ama ser um superherói, nós vimos quão bom ele é nisso e nós vimos como isso foi tirado injustamente dele.
E essa escolha não saudável, sair às escondidas leva a uma crise, Mirage o rastreando, que leva a Síndrome tirando Bob da aposentadoria e você parte para o Segundo Ato.
A sua história está surgindo dos desejos mais profundos e medos mais obscuros da sua personagem. A coisa que ela ama é tirada e o mundo é revelado como um lugar injusto.
Para deixar tudo em ordem, ela tem que tomar a jornada que é o restante do filme e ao final da jornada, se tudo der certo, ela não só terá recuperado o que perdeu, mas será forçada a consertar aquela pequena falha que tinha quando a conhecemos.
Então é isso que aprendi na Pixar, e não estou dizendo que todas as histórias tem que começar desse jeito, mas se você está escrevendo um roteiro e está tendo dificuldades no início, espero que essas ideias ajudem.