O que dá para fazer em uma página de roteiro?
Uma página de roteiro bem diferente das outras em "Ninguém vai te Salvar" (2023)
Roteiristas. Seres criativos, artísticos, que nutrem imagens e sons nas próprias mentes. Roteiristas desenvolvem a habilidade para transformar essas imagens e sons em palavras que formam um texto, escrito em telas e páginas - geralmente brancas. Após lidas, essas palavras formam novas imagens e sons na mente das pessoas em uma cadeia de produção que vai do orçamento à definição de um figurino de figurante. O texto então vira filme, série, reality show, documentário ou viral de Tik Tok.
Até que alguém fale de formatação de roteiro. Acaba a brincadeira na hora.
Formatação é um assunto recheado de regras, deixando zero espaço para a criatividade, para a arte. Por vezes é um campo semi-militar que deve garantir que todas as pessoas envolvidas em fazer um texto virar obra audiovisual estão falando a mesma língua.
Não me leve a mal, todo mundo falar a mesma língua é muito, muito importante.
Até que surge uma página de roteiro assim (imagem com spoilers do filme “Ninguém vai te Salvar”, de 2023):
Uma página comum de roteiro
Eu poderia trabalhar aqui com uma longa explicação ou um diagrama colorido com setas mostrando o básico de como se deve formatar um roteiro. Esse caminho é muito válido e eu vou deixar uma playlist do YouTube com vídeos introdutórios e exploratórios sobre formatação de roteiro que já fazem bastante disso.
Só que eu me divirto tão mais ao falar desse assunto desapegando um pouco desse lado de regras, regras, REGRAS...
As regras e convenções e combinados e comum-acordos não ditos do mercado audiovisual podem andar lado a lado com a nossa criatividade como roteiristas, o nosso ofício artístico de escrever roteiros.
É nessa ideia - espero que não seja uma ideia revolucionária - que acredito. Então é dessa forma que eu vou tentar seguir, e esse texto vai tratar desse exemplo muito diferente e artístico da página acima. No caminho, sempre que possível, vou aproveitar para trazer o que é comum ou “regra”.
O roteiro de “Ninguém vai te Salvar” não é um experimento guardado em uma biblioteca, sem uso. Esse filme está no Disney Plus no Brasil (na data de publicação do texto, vai saber o que a Disney faz com qualquer coisa no seu catálogo amanhã).
Brian Duffield, o roteirista e diretor do filme, não fez essa estripulia nas 89 páginas de seu roteiro. Aí também seria demais, né. Ele fez em uma. As outras 88 funcionam bem no padrão.
Quer dizer, mais ou menos no padrão.
“Ninguém vai te Salvar” é um filme peculiar de cara por sua falta de diálogos. Isso não quebra nenhuma regra, só é menos comum. É um filme de terror, que aposta no isolamento da sua protagonista, Brynn (Kaitlyn Dever), uma protagonista sem mania de falar sozinha.
É uma das premissas do filme que vai naturalmente influenciar a formatação do roteiro, com pouquíssimos diálogos. Junta-se a isso o gênero e a demanda narrativa de criar tensão, e a formatação desse roteiro vai ter uma cara específica.
Tá, mas que formatação é essa?
Essa é a página 1 do roteiro. Vou traduzir os trechos que eu precisar destacar. Por ora, seguimos com o “visual”.
Essa página é composta de maneira bem tradicional (com alguns “desvios” sutis). Ela contém dois elementos comuns à formatação de um roteiro, as linhas de cabeçalho e de rubrica.
As linhas inteiramente em negrito e caixa alta são os cabeçalhos das cenas. Eles estão escritos da maneira tradicional. O negrito não é obrigatório no cabeçalho, mas é uma opção. Os cabeçalhos começam com uma definição de que as cenas dessa página ocorrem em ambientes “internos” ou “interiores” com a abreviação: “INT. ” Essa notação informa a produção que a cena se passa em um cenário fisicamente fechado, como o cômodo de uma casa.
Logo depois vem a informação sobre a locação, como “BASEMENT” ou “BATHROOM”. No caso da primeira cena, é o banheiro da casa de Brynn. Na segunda cena, o quarto.
Por fim, o cabeçalho termina com a indicação de tempo “MORNING”, manhã em inglês. Esse “MANHÔ já deixaria 99% dos produtores de cabelo em pé, mas eu não quero escrever sobre cabeçalho hoje. Fica aí o apontamento, nota mental, asterisco, para eu não soar negligente: o mais comum seria usar apenas “DIA” ou “NOITE”.
Seguimos dos cabeçalhos para as rubricas, as linhas de descrições de ação, que são todas as outras linhas dessa página 1 fora os cabeçalhos.
Primeira descrição:
“BRYNN pratica sorrir no espelho”.
Brynn, a nossa protagonista, tem seu nome em caixa alta por ser apresentada pela primeira vez, uma prática sempre que introduzimos um personagem novo no roteiro. Não é comum nem necessário que seu nome esteja em negrito, apesar de que tenho visto isso ocorrer em alguns roteiros, como no de “Ficção Americana” (2023).
Não é comum, e é indicado, que seu nome venha acompanhado de uma indicação de idade e descrição sobre ela. Algo como:
“BRYNN, 25 anos, jaqueta jeans sobre o pijama” ou;
“BRYNN (25, sempre com olheiras)” ou;
“BRYNN (25, não fala com ninguém há semanas e não sente falta disso)” ou mil e uma outras opções.
Essas informações podem ou não vir entre parênteses, e podem trazer muito da voz da pessoa autora na forma com que descreve um personagem.
Espera, deixei escapar que já tem um traço de criatividade na forma de descrever um personagem. Isso não é beeeeem uma questão de formatação, mas esse assunto sempre tangencia como escrevemos. Enfim, com ou sem parênteses, com mais ou menos descrição, cada pessoa pode ter o seu estilo.
Depois do nome, vem a ação da personagem. Afinal, “linhas de ação”. Essas linhas de descrição, a parte do roteiro que mais parece uma prosa, existem com a expectativa de que vamos descrever ações, sempre em tempo presente. “Roteiro não é literatura”, diz a convenção.
Vale lembrar aqui outra “máxima” do mundo do roteiro: em média, 1 página de roteiro equivale a 1 minuto da obra em tela. Qualquer dia desses a gente bate uns papos mais profundos sobre essas convenções, mas vamos tomar essa média como base nesse momento.
Então, se uma descrição for extremamente minuciosa, se preocupar com detalhes que podem ser melhor definidos por departamentos de produção especialistas em suas competências, uma série de problemas começa a surgir. Primeiro, o ego de muita gente fica incomodado - e isso não é uma crítica à “muita gente”; se roteirista também é artista, tem que saber que ego importa. Temos as nossas especialidades, e na arte colaborativa do audiovisual, outras funções têm as suas especialidades. Um pisando na área do outro não costuma ser legal.
Segundo, o “tempo de tela” começa a ser engolido por essas descrições, ou por devaneios na mente de personagens que não são viáveis de se mostrar em tela na maioria dos casos. Nessa hora as convenções surgem à rodo, “roteiro não é literarura” ou “mostre, não conte”, e por aí vai.
Beleza, entendido, a rubrica (a linha de ação) deve priorizar descrever as ações, que são o principal que vemos e ouvimos em tela. As ações são descritas no tempo presente, pois acompanhamos as ações na tela no momento em que ocorrem. Brynn pratica sorrir no espelho, não “praticou” ou “praticará”.
A página 1 de “Ninguém vai te Salvar” segue de forma a estabelecer bem o estilo do roteiro de Brian Duffield. Rubricas curtas, sucintas, inicialmente focadas em descrever as ações de Brynn e comentar sobre elas de uma maneira a aprofundar a personagem, sem se perder com detalhes sobre o cenário, por exemplo. Essa escolha de como escrever e formatar o roteiro começa a causar alguns efeitos de cara:
Eu leio a primeira página e imagino a câmera próxima de Brynn o tempo todo. Foco em como a personagem pratica o sorriso no espelho ou como ela não fica convincente nessa prática (“She’s not particularly convincing”) ou como ela tem uma relação íntima com dois vestidos porque ela os costurou (“Brynn stares at two dress options. She made them both.”). Como leitor, eu imagino essas expressões e gestos que evidenciam esses sentimentos. Na produção, a atriz vai trabalhar como atuar essas ações de forma a fazer esses significados ficarem evidentes para o público.
Cada rubrica (linha de ação) é curta e quebra a linha para a próxima ação ou comentário, dando um ritmo mais acelerado na leitura. Cada linha é sucinta, determinando o que a câmera ou o som precisam focar em nos entregar, o que dá a sensação de que o contéudo central de cada linha importa, precisa ser visto na tela ou escutado em seu tempo. Não é obrigatório, mas essa forma de escrever pode influenciar em quão rápida ou demorada é a filmagem da cena. Por exemplo, na segunda cena, vamos comparar o efeito com ou sem as quebras de linha?
Opção 1, igual ao roteiro:
“Brynn encara duas opções de vestido.
Ela fez ambos.
Após algum debate, ela escolhe um.
Então ela muda de ideia e vai com o outro”.
Opção 2, parágrafo único:
“Brynn encara duas opções de vestido, ela fez ambos. Após algum debate, ela escolhe um, então muda de ideia e vai com o outro”.
A segunda opção está levemente adaptada por mim para se encaixar melhor como um único parágrafo. O que muda na sua percepção? Qual das duas parece ser mais rápida na sua execução na versão da cena que se formou na sua mente? O que te chama atenção como parte mais importante da cena em cada opção? Não sou dono de gabaritos, fica o convite para a conversa nos comentários!
Os itens que enumerei (e a perguntinha feita para você) são algumas possíveis interpretações tiradas de como o roteirista decidiu escrever esse roteiro, tanto em seu conteúdo como em sua formatação.
Rubricas contém essas e muitas outras convenções, pressupondo que a criatividade estará no conteúdo e algum estilo será demonstrado na escrita. Elas vão se misturar a diálogos, eventuais transições e alguns outros elementos menos comuns para dar a cara de uma página de roteiro. No caso de 88 páginas de “Ninguém vai te Salvar”, a cara vai ser bem parecida com a que vimos na página 1.
Certo, mas… e na tal página 72?
Uma página incomum de roteiro
A página 72 é um calhamaço de letras, uma página inteira preenchida, sem qualquer quebra de linha, parágrafo, nada. Ela é preenchida do início ao fim como uma única rubrica.
Vamos começar pelo “como” para tentar entender o que está acontecendo nela. Vamos entrar em um pouquinho de spoiler sobre a cena específica do filme. A descrição pode ser um pouco excessiva para quem não gosta de filmes de terror.
Antes, na página 71, a história chega próxima ao clímax de uma importante sequência. A casa de Brynn está sendo invadida por alienígenas e Brynn está fugindo pelos cômodos, até chegar no próprio quarto. Uma vez no quarto, Brynn fica encurralada em um dos cantos entre as paredes, tentando se esconder, até que uma luz entra pela janela e ilumina Brynn.
Ela fica paralisada e seu corpo é erguido e pressionado no teto. Tudo o que Brynn consegue mover são seus olhos. A página 71 termina com três repetições da frase “She can’t move”, desse jeito.
Ela não pode se mover.
Ela não pode se mover.
Ela não pode se mover.
É esse o “gancho” que a escrita de Brian Duffield usa para entrar na sopa de letrinhas da página 72. A primeira coisa que acontece é uma repetição ininterrupta da frase anterior, sem espaços, acentos ou símbolos, sem caixa alta ou qualquer outra formatação de texto. Fica fácil de ler assim:
shecantmoveshecantmoveshecantmoveshecantmoveshecantmove
Traduzindo para melhor compreensão:
elanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemover
Bem melhor agora, né?
Esse vômito padronizado de letras segue até um primeiro espaço, e então recebemos uma frase intelígivel, com palavras, espaços, tudo em negrito:
Sua porta abre
Novo espaço e imediatamente a chuva de letras “shecantmoveshecantmove” volta a aparecer. Começa a surgir um padrão. Essas sequências de letras funcionam como separadores das frases que realmente descrevem as ações da cena. As seguintes descrições de ação, as linhas de rubrica, vem em sequência, intercaladas sempre pelas chaves de letras ininterruptas:
O Cinza está ali
Ele se move lentamente até ela
Então se eleva na luz
Elevando-se até ela
A partir dessa frase vem a primeira mudança. A sequência de letras que separa a frase é a mesma, mas agora com uma formatação de texto, em itálico:
elanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemover
Mais uma frase de rubrica:
Eles estão cara a cara
e mais uma sequência em itálico, contudo, dessa vez um pedaço da sequência é alterado, desse jeito:
elanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoveremeudeusmeudeusmeudeusmeudeuslanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemover
A expressão “oh god” que coloquei já traduzida acima para “meu deus” entra embutida no texto, em negrito, mas sem os espaços. Depois, o padrão volta, trazendo as rubricas:
O Alien abre sua boca
E começa a convulsionar
Mais uma vez, a sequência de letras ganha uma variação:
elanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemovereCONVULSIONANDOlanãopodesemoverelanãopodesemoverelanãopodesemover
e então todas as sequências de letras seguem intactas, em itálico, intercalando as próximas rubricas até o fim da página:
Brynn não consegue nem mexer a boca para gritar
Suas lágrimas caem por sua face
Algo está saindo da “fucking” boca dele
ALGO ESTÁ SAINDO DA “FUCKING” BOCA DELE
ALGO ESTÁ SAINDO DA “FUCKING” BOCA DELE
E está VIVO
Como um coágulo de sangue vivo
Ele guincha para Brynn
Antes de rastejar para dentro de sua garganta
E a página 72 acaba exatamente no fim da palavra “garganta”. Página 73 em diante, a formatação do roteiro volta ao normal. Não achei necessário traduzir o “fucking”, mas deu pra entender o resto, certo?
Por que uma página incomum de roteiro?
Nesse ponto eu acho interessante destacar quão incomum é essa página. Eu diria que essa foi a primeira vez que vi uma página de roteiro como essa. Já vi páginas de roteiro com imagens, indicações incomuns, usos de elementos de formatação para propósitos diferentes de seus propósitos originais… mas desse jeito, como no “print” da página que coloquei mais acima, nunca vi.
Pode ser só um vácuo de conhecimento meu. Talvez existam outras páginas assim. O visual da página lembra até mesmo documentos censurados com apenas algumas palavras aparecendo. O ponto é: a formatação dessa página é muito incomum.
Então a ideia não é chegar aqui e dizer para você FAÇAM ISSO EM TODOS OS ROTEIROS QUE ESCREVEM, É BRILHANTE.
Algo assim é arriscado, e mesmo que você saiba porque está tentando algo tão diferente, ainda vai ter gente que vai olhar torto porque… porque é diferente.
Talvez sequer funcione. Talvez atrapalhe uma tentativa de venda do projeto para uma produtora ou empresa no mercado que lê em um projeto com essa escrita algo fora dos seus objetivos comerciais.
Com certeza é mais fácil fazer isso em um roteiro onde a pessoa roteirista também dirige o filme, como é o caso de Brian Duffield em “Ninguém vai te Salvar”. Ele talvez já tivesse em mente como queria filmar essa cena, algumas imagens em sua mente. É mais fácil quebrar regras e convenções quando se está no cargo que comanda a parte artística da obra.
Dito tudo isso, eu acho casos assim fascinantes porque me fazem voltar para a ideia “revolucionária” lá do início do texto. Até na formatação do roteiro dá para ser criativo, afinal, a formatação do roteiro é parte das ferramentas do nosso ofício, não um suplício pelo qual precisamos perdurar para emplacar nossas histórias.
A partir de agora, tudo aqui é a minha interpretação sobre o uso da formatação nessa página.
A primeira sensação que tenho quando me deparo com esse calhamaço de texto, ainda antes de ler o que está escrito, é de um excesso de informação, de algo que atropela ou inunda a mente, como um ruído. Especialmente com letras escritas em uma sequência que não é legível automaticamente, a página fica com uma sensação… alienígena.
Ruídos são efeitos sonoros muito eficientes no cinema para passar estados emocionais divergentes. Podem ser usados para mostrar um personagem perdido por um excesso de estímulos aos sentidos, para mostrar um personagem imerso em pensamentos e alheio ao mundo exterior, entre muitas outras possibilidades.
Brynn, nessa cena, está passando por um momento, no mínimo, único. Uma invasão alienígena na sua própria casa, seu próprio quarto, sozinha, paralisada, é algo que podemos chamar de excesso de estímulos, talvez?
Além da disposição das letras, as palavras escolhidas importam. Brynn “não pode se mover”. Ela está presa, paralisada, e a página dá uma sensação claustrofóbica com um texto que preenche todos os espaços, sem deixar margens de respiro. Não há escapatória para ela, nem para nós lendo a página. As únicas pausas são as descrições das ações, mas elas, em negrito, em posições variadas da página, só aumentam o peso e o caos conferidos por cada movimento que acontece na cena.
Esses detalhes vão transformando a página de texto em uma metáfora visual e sensorial para o estado da própria Brynn. O próprio texto está encurralado, a própria escrita fica mais pesada, agressiva, com usos de negrito, caixa alta, sublinhados e palavrões, trazendo à tona o aumento do desespero de Brynn a cada movimento do alienígena em sua direção.
Repara, a sequência de letras “elanãopodesemover” é formatada em itálico após o alienígena começar a se erguer na luz, se aproximando do rosto de Brynn. O itálico por si só é como um mini “beat” na cena: um momento que intensifica a tensão da cena e causa uma mudança no estado mental da personagem, para uma intensidade de desespero maior ainda.
Quando expressões passam a entrar embutidas na sequência de letras, como é o caso de “meudeusmeudeusmeudeus”, podemos nos colocar no lugar de Brynn pensando como ela. É quase como um diálogo, porém um diálogo interno. Os pensamentos da personagem se infiltram no “texto”, reagindo com pavor à proximidade do alienígena. Brynn não consegue falar, mas seus sentimentos estão expostos ali.
A formatação do roteiro nessa página faz um trabalho tão importante quanto o próprio conteúdo do texto para nos colocar no ponto de vista da personagem e passar seus sentimentos.
O terceiro ponto retorna em uma das convenções que abordei lá em cima. Lembra que uma página de roteiro equivale, em média, a um minuto na tela?
Se o roteiro descrevesse as ações diretamente, linha a linha de rubrica sem o “floreio” que Brian usou, a página terminaria mais cedo. Ficaria assim (traduzida e adaptada):
O uso criativo de Brian também passa a mensagem para a produção (ou para ele mesmo quando for dirigir) de que essa cena precisa ser alongada, estendida, e não durar cerca de 30 segundos. No formato que fiz acima, a cena ocupa um pouco mais da metade da página.
A direção tem total liberdade de pegar essa página e transformar em uma cena de 15 segundos, ou de 1 minuto, e o mesmo vale para a página original de Brian Duffield. Mas é interessante pensar na intenção do roteirista, em como ele “conversa” com a convenção para formatar esse roteiro.
A quarta sensação que a página original me passa, e talvez mais importante do que a terceira, é o fato de que Brian Duffield propositalmente ocupa a página inteira, de maneira completa. As últimas letras da página 72 do roteiro são a frase: “Antes de rastejar para dentro de sua garganta”.
O que isso mostra? A página termina exatamente no gancho, ou “cliffhanger”. É um incentivo para a pessoa leitora desse roteiro seguir imediatamente, tensa, curiosa ou ansiosa, para a próxima página. Esse roteiro, na maneira que é formatado, possibilita gerar em quem lê a exata sensação que muitas vezes perseguimos no público da obra pronta, a vontade de saber o que vem a seguir e continuar fisgado. Se a cena terminasse mais cedo, como na adaptação que coloquei aqui em cima, a mudança para a próxima cena talvez diminuísse a energia ainda durante a leitura da mesma página.
Esse nível de intenção da parte da autoria mostra um domínio grande do ofício, da escrita, como uma pessoa autora que usa capítulos e a página dos livros para criar ganchos no processo de leitura de um romance. Eu chamo de “intenção” porque já vi esse cuidado de como “encerrar” uma página de roteiro e seguir para a próxima em outros roteiros de Brian Duffield. As duas primeiras páginas do roteiro de “Em Busca da Justiça” (Jane Got a Gun, 2015) são um belo exemplo disso.
No fim, produtores e chefes de canais fisgadas ou fisgados no nosso roteiro provavelmente têm mais chances de querer comprar nossos projetos, não?
Conclusão inconclusiva
Chacrinha veio para confundir e eu não vim para explicar. Talvez. Não me decidi ainda.
Um chavão que não se restringe ao mundo do roteiro diz que devemos dominar as regras de um assunto para sabermos como quebrá-las. Isso faz muito sentido. Brian Duffield é um roteirista com estrada e grandes acordos comerciais em Hollywood. Ele criou uma reputação antes de escrever essa página desse jeito.
No entanto, eu gosto de imaginar que como artistas, a gente também pode conhecer os “limites” ou os casos diferentões como inspirações do que temos à nossa disposição. Onde a nossa criatividade pode ser exercida, e como?
Esse texto mistura um pouco de guia, um pouco de esculhambação, mas a minha vontade é olhar justamente para esses casos diferentes, que rapidamente seriam julgados como errados, e aprender com eles. Talvez essa página seja mais eficiente em passar o sentimento da personagem, desse jeito, em um filme e contexto específico, do que seria se escrita de maneira tradicional.
As quatro sensações que eu tirei da página 72 e descrevi acima talvez não tenham sido todas intencionais por parte do roteirista. Mas tudo bem, pois o meu propósito aqui é explorar as possibilidades. Quem sabe, ganhamos algumas ferramentas que podem se tornar partes da nossa maleta, do nosso kit de ferramentas de escrita, dos recursos que temos à nossa disposição no nosso ofício.
Foi com essa filosofia que eu dei uma aula de formatação de roteiro no programa New Voices, e foi muito rico explorar com estudantes alguns exemplos do que é possível fazer em uma página de roteiro.
A maior conclusão que eu tiro é que eu pretendo fazer mais textos desse. Talvez não tão longos ou extremos, afinal essa é uma página bem diferente. Mas eu gosto da ideia de explorar esses casos estranhos de formatação para navegar pelas regras, convenções e o que mais podemos fazer na hora de formatar e, principalmente, escrever roteiros.
No site Além do Roteiro, guarda-chuva dessa publicação aqui no Substack, você pode conferir o roteiro de “Ninguém vai te Salvar”, outros roteiros de Brian Duffield e muito mais. Muito, muito mais. Mais de 3 mil roteiros, para falar a verdade. São praticamente todos gringos porque lidar com essa questão de direitos autorais aqui no Brasil é delicado e mexe com potenciais colegas de trabalho… Mas tenho muita vontade de conseguir explorar a nossa escrita mais diretamente aqui também.
Você também pode conferir essa bela entrevista de Brian Duffield no podcast Script Apart para conhecer mais das decisões artísticas tomadas no roteiro e direção de “Ninguém vai te Salvar”.
Então acessa lá a pasta de roteiros, lembrando que eles são disponibilizados gratuitamente para uso educacional. Boa leitura, boa escrita e bons ventos!
Acho que o roteiro de Um Lugar Silencioso também tem páginas que fogem da formatação tradicional, vale a pena uma parte 2!
Que texto incrível! Obrigada pela reflexão, Yann. Dá até um gás pra escrever mais :)